O que é Avaliação do Ciclo de Vida

Imagem de um mosaico mostrando quatro quadrantes. A do canto superior esquerdo é uma foto de escavadeiras e caminhões retirando recurso natural em uma área aberta; a do canto superior direito é uma foto do processo de fabricação de latas de alumínio; a do canto inferior direito é a foto de uma pessoa segurando uma lata de alumínio de um refrigerante e despejando o líquido em um copo de vidro; a do canto inferior esquerdo é uma foto de várias latas de alumínio amassadas e amontoadas, sugerindo que foram descartadas
Extração, transformação, uso e descarte

A Avaliação do Ciclo de Vida (ACV) é uma ferramenta que serve para compilar e avaliar informações sobre materiais e energia na medida em que estes fluem através de um serviço ou cadeia de manufatura de um produto1,2.

Através da ACV é possível identificar o uso de material e energia e os fluxos de emissão de um produto, serviço ou processo ao longo de todo o seu ciclo de vida – desde a extração da matéria-prima (berço) até o descarte final (túmulo), com o intuito de avaliar o impacto ambiental3,4 do objeto de estudo.

Histórico

Originalmente desenvolvida nos EUA no final dos anos 1960 e durante os anos 70, as preocupações com os limites quanto ao uso de matérias-primas, de recursos energéticos e suprimento de tais recursos, além da necessidade de contabilizar o uso cumulativo de energia gasta em um processo5 foram os principais motivos que estimularam a criação da ACV.

Vários estudos conduzidos naquela época buscavam melhor entender como os processos produtivos poderiam racionalizar o consumo de recursos naturais6. Um dos principais foi o da empresa americana The Coca-Cola Company.

Em 1965 a empresa encomendou um estudo comparativo entre os recipientes utilizados para engarrafar seu principal produto (refrigerante), com o intuito de descobrir qual lançava a menor quantidade de poluentes no meio ambiente e o que menos afetava o suprimento de recursos naturais5.

O estudo da Coca-Cola consistia em quantificar as matérias-primas, o combustível e as cargas ambientais usados no processo de produção de cada recipiente. Assim, tal estudo se tornou o responsável por lançar naquele país as bases para os atuais métodos de análise de inventário de ciclo de vida de um produto, do berço ao túmulo6, representado pelo gráfico abaixo.

Figura mostrando os estágios do ciclo de vida de um produto, desde a extração dos recursos naturais (matéria-prima) até o descarte final (ciclo chamado do berço ao túmulo). Os estágios intermediários são a manufatura do produto, seu uso e envio para reciclagem ou incineração (ou aterro sanitário).
Figura adaptada de UNEP7

Com o aumento da população mundial e da consequente demanda por recursos energéticos finitos, pesquisadores da área ambiental começaram a publicar estudos de modelagem global, no início dos anos 19708,9.

Tais estudos serviriam de prognóstico sobre a possibilidade futura de um rápido esgotamento dos combustíveis fósseis em função da energia usada nos processos industriais5.

Um fator importante para o desenvolvimento e avanço da ACV é atribuído à crise energética do começo dos anos 70. Naquela ocasião, a disparada do preço do barril de petróleo resultou numa tremenda crise mundial sem precedentes6, alimentada pelo aumento dos custos de energia, levando empresas e consumidores a pensarem em alternativas para reduzi-los.

A publicação do livro The Limits to Growth, em 1972, serviu de força propulsora para o começo de uma consciência coletiva global quanto às consequências de um futuro esgotamento dos recursos naturais de nosso planeta3.

Não demorou muito tempo para se estabelecer uma relação entre a produção e o consumo de bens com a poluição ambiental – o que estimulou o setor de energia dos Estados Unidos a construir os primeiros inventários de ACV.

A partir de então, os inventários continuaram a ser feitos pelo órgão ambiental americano no sentido de se conhecer os níveis da poluição produzida pela frota de veículos daquele país10.

Em sintonia com o setor de energia, havia também preocupações com o atendimento das necessidades de empresas – e de profissionais responsáveis por tomadas de decisão – para que pudessem determinar a extensão dos impactos que embalagens de produtos poderiam causar ao meio ambiente11.

Assim, a ACV se desenvolveu até chegar aos dias atuais, em que as preocupações ambientais quanto ao uso racional dos recursos naturais definitivamente despertaram o interesse de parte da população, empresas nacionais e multinacionais e governantes de vários países.

Limitações iniciais

Nos primórdios da ACV, os trabalhos que a usaram como metodologia invariavelmente apresentavam resultados conflitantes porque se baseavam em métodos, dados e terminologias que eram diferentes entre si3

Em casos extremos, estudos comparativos feitos para o mesmo produto apresentavam resultados bem distintos, inclusive contraditórios, porque no momento de definição dos procedimentos de coleta dos dados os autores dos trabalhos adotavam critérios diferentes que acabavam interferindo nos resultados finais12.

Diante de tais desconformidades, diversas necessidades surgiram nos anos 80, tais como a criação de uma metodologia para a ACV e a padronização de relatórios ambientais.

Como resultado, vários projetos e oficinas internacionais – juntamente com outras atividades da área – deram origem à primeira formulação internacional do “Código de Prática para a ACV”, sob a tutela da Society of Environmental Toxicology and Chemistry (SETAC), a qual tem produzido extensivo material sobre ACV.

Aplicações

Além de ser uma técnica de gestão ambiental, a ACV é usada na avaliação de potenciais impactos associados ao atendimento de funções de um referido produto. Seu estudo deve sempre ser feito com base na função desse produto, uma vez que ele é concebido com o principal propósito de atender desejos e necessidades13,14,15.

Por sua versatilidade e possibilidade de aplicação em diferentes sistemas, os estudos de ACV podem ser utilizados para ajudar empresas na tomada de decisão quanto à concepção, criação ou melhora de um produto3.

Empresas também podem usar a ACV para fazer marketing de bens e consumo que sejam sustentáveis, benchmarking entre os concorrentes da empresa, ou como suporte na elaboração de políticas públicas10.

Uso da ACV como metodologia

De acordo com o Dicionário Michaelis, a palavra metodologia significa um “[…] conjunto de regras e procedimentos para a realização de uma pesquisa” ou para especificar os dados que precisam ser coletados, os cálculos que devem ser feitos e as diretrizes para interpretar resultados3

No caso de uma ACV, a metodologia oferece oportunidades para identificar pontos críticos ambientais numa comparação entre produtos e para fornecer a base para a padronização de métricas.

Ela também pode servir para identificar indicadores de desempenho cujos resultados darão suporte à tomada de decisão na gestão de seus ciclos de vida16.

Como ferramenta metodológica, a ACV cria as bases que possibilitam a comparação de produtos que exercem a mesma função, como é o caso dos biocombustíveis líquidos, por exemplo.

Estudos de ACV geralmente utilizam as estruturas metodológicas da NBR ISO 14040 (Princípios e Estrutura) e NBR ISO 14044 (Requisitos e Orientações). Ambas foram normatizadas internacionalmente em 2009 pela International Organization for Standardization (ISO); no Brasil, pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).

As quatro fases de um estudo de ACV

Segundo a ABNT1, as estruturas metodológicas sobre as quais um estudo de ACV se apoia determinam que os procedimentos gerais para sua execução incluam quatro fases: definição de objetivo e escopo, análise de inventário, avaliação de impacto e interpretação de resultados – interagindo conforme mostrado na clássica figura abaixo.

Gráfico mostrando a estrutura da ACV, com 4 retângulos: três do lado esquerdo e um do lado direito. Os 3 do lado esquerdo têm o tamanho de uma pilha AA e estão na posição horizontal (como se as pilhas estivessem deitadas), um acima do outro, com um espaço entre eles. O do topo representa o objetivo e escopo, o do meio, logo abaixo, representa a análise de inventário, e o de baixo, representa a avaliação de impacto. O retângulo da direita tem o tamanho de uma pilha D, e está posicionado como se a pilha estivesse em pé, com a altura igual à altura das outras 3 pilhas deitadas. Este retângulo representa a interpretação de resultados. Todos os quatro retângulos estão interligados por duas setas nos dois sentidos: de um para outro e de outro para um.
Figura adaptada de ABNT

Definição de objetivo e escopo

A definição do objetivo e escopo é a primeira fase da ACV, na qual os principais elementos do estudo são definidos, como sua abrangência, limites e motivos – claros e inequívocos – para sua execução6.

Tais limites incluem a definição do produto e a função atendida, bem como a unidade funcional – que é a quantificação do exercício da função e de grande importância para o entendimento dos resultados de uma ACV.

Nessa fase será preciso também definir os fluxos de referência e as unidades de processo, importantes quando produtos são comparados entre si1. Além destes, define-se também as fronteiras do sistema, as quais são elementos físicos ou imaginários encarregados de delimitar o espaço avaliado pela ótica da metodologia12.

É durante a primeira fase da ACV que ocorrem as exigências referentes aos dados e sua qualidade, suposições e uso pretendido com o estudo, além do público-alvo a quem ele se destina12.

De forma resumida, a definição do objetivo e escopo pode ser traduzida como um plano de voo no qual se determina o ponto de partida, o ponto aonde se quer chegar e como fazer para alcançá-lo14.

Análise de inventário

Nessa segunda e mais trabalhosa fase da ACV acontece a coleta dos dados específicos (foreground data) e genéricos (background data) necessários para a modelagem do ciclo de vida do produto16, incluindo todas as entradas e saídas ambientais.

Em outras palavras, na análise de inventário é quando ocorre a quantificação de material (geralmente representada pela matéria-prima) e de energia que entram e saem de uma unidade de processo10, representado graficamente pela figura a seguir.

Durante essa fase serão feitos o acompanhamento da coleta, identificação e quantificação dos dados de uso de recursos e de liberações no ar, na água e no solo, associados com o sistema.

Nela também são feitos o levantamento de dados in loco e sua posterior análise, assim como a verificação dos refinamentos necessários para a elaboração da ACV. Resumidamente, essa fase lida com a coleta e o tratamento de dados14.

Avaliação de impacto

Essa terceira etapa refere-se à compreensão da relevância do impacto ambiental e da compilação das entradas e saídas de um sistema. Aqui também se processa o entendimento da avaliação e análise da significância de potenciais impactos ambientais e da saúde humana causados por um sistema ou produto durante todo o seu ciclo de vida1,17.

É durante essa fase que ocorre a seleção das categorias de impacto (tais como mudanças climáticas, eutrofização, ecotoxicidade, acidificação, depleção de recursos, depleção do ozônio estratosférico, dentre outras) que representam os impactos ambientais relevantes, associados aos resultados da análise do inventário do ciclo de vida1.

Interpretação de resultados

Com base nos objetivos expressos na primeira etapa, a quarta e última fase da ACV consiste em entender a abrangência e as implicações dos impactos ambientais de um produto.

Interpretar os resultados é importante para saber como aplicá-los na tomada de decisão ou na resolução dos problemas que aparecem no estudo10. Nessa fase também ocorre a identificação e análise comparativa entre os resultados obtidos e os dados fornecidos pela ferramenta de ACV que servirão de guia para direcionar futuros estudos e formular propostas de políticas públicas17.

Abordagens da ACV: atribucional vs. consequencial

Ao logo dos anos a ACV tornou-se uma ferramenta essencial para o entendimento e quantificação de impactos ambientais. Conhecer melhor os atributos inerentes a tais produtos e processos possibilita uma tomada de decisão de forma mais crítica e consistente18.

A seleção das fronteiras do sistema de produto se torna fundamental para a representatividade do modelo de ACV, cujo escopo baseia-se em duas linhas de pensamento: abordagem atribucional e abordagem consequencial19.

A abordagem atribucional baseia-se nas relações quantitativas entre entradas e saídas do sistema, fornecendo informações sobre os impactos causados pelos processos que envolvem a produção de um produto, excluindo os efeitos indiretos resultantes de alterações na saída do mesmo.

Já a abordagem consequencial fornece informações sobre quais consequências podem advir de uma mudança no nível de produção, consumo e descarte de um produto, incluindo os efeitos indiretos que podem ocorrer dentro e fora de seu ciclo de vida20,21.

Em síntese, a abordagem consequencial tenta capturar as consequências de uma decisão, enquanto que a atribucional não19.

Se por um lado há autores que criticam a abordagem atribucional por ela não mostrar como as decisões relativas a tais modelos econômicos podem incorrer em mudanças nos impactos ambientais22, por outro lado há os que dizem que a abordagem consequencial é muito dependente de modelos econômicos ligados a efeitos de mercado, tais como oferta, demanda e elasticidade de preços.

Portanto, será preciso ter bastante critério no momento da escolha entre as abordagens, uma vez que elas fornecem respostas para perguntas diferentes. Fracassar em fazer tal distinção resultará na escolha do método errado e, consequentemente, na má interpretação dos resultados da ACV20.

Referências

[1] ABNT. Associação Brasileira de Normas Técnicas. NBR ISO 14040: Gestão Ambiental – Avaliação do Ciclo de Vida – Princípios e estrutura. Rio de Janeiro. 2009.

[2] Theis, T.; Tomkin, J. Sustainability: A Comprehensive Foundation. Houston: Connexions, 2012.

[3] UNEP. United Nations Environment Programme. Life cycle assessment: what it is and how to do it. 1996.

[4] Edwards, C.; Fry, J. Life cycle assessment of grocery carrier bags: a review of the bags available in 2006. Report SC030148. Bristol: Environment Agency, 2011.

[5] SAIC. Scientific Applications International Corporation. Life Cycle Assessment: Principles and Practice. 2006.

[6] Chehebe, J.R.B. Análise do Ciclo de Vida de Produtos: Ferramenta Gerencial da ISO 14.000. Rio de Janeiro: Qualitymark, 2002. 120 p.

[7] UNEP. United Nations Environment Programme. Why take a life cycle approach? DTI/0585/PA. ISBN 92-807-24500-9. 2004.

[8] Meadows, D.H. et al. The Limits to Growth. New York: Universe Books, 1972. 211 p.

[9] Goldsmith, E.; Allen, R. A Blueprint for Survival. The Ecologist. v.2 n.1, 1972.

[10] Schenk, R. LCA for Mere Mortals: A Primer on Environmental Life Cycle Assessment. Boonton: First Environment, 2000. 99 p.

[11] UNEP. United Nations Environment Programme. Guidelines for Social Life Cycle Assessment of Products. 2009.

[12] Kulay, L.A. Avaliação do Ciclo de Vida de Produtos. Curso de Especialização em Gestão e Tecnologias Ambientais (apostila). PECE – Programa de Educação Continuada. Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. São Paulo: Poli, 2008.

[13] EPA. U.S. Environmental Protection Agency. Risk Management Sustainable Technology. Life Cycle Assessment (LCA). Introduction to LCA 101. 2013.

[14] Silva, G.A.; Kulay, L.A. Avaliação do Ciclo de Vida. In: Vilela Júnior, A.; Demajorovic, J. (Org.). Modelos e ferramentas de gestão ambiental: Desafios e perspectivas para as organizações. 2 ed. São Paulo: Editora Senac, 2010. p. 325–348.

[15] Coltro, L. (Org.). Avaliação de Ciclo de Vida como Instrumento de Gestão. Campinas: CETEA/ITAL, 2007.

[16] Goedkoop, M. et al. Introduction to LCA with SimaPro. 2013.

[17] ABNT. Associação Brasileira de Normas Técnicas. NBR ISO 14044: Gestão Ambiental – Avaliação do Ciclo de Vida – Requisitos e orientações. Rio de Janeiro. 2009.

[18] Behrends, F.J. Greenhouse gas footprint of biodiesel production from used cooking oils: A life-cycle assessment. 2018. 75 p. Master Dissertation – Faculty of Geosciences, Utrecht University. Utrecht, 2018.

[19] Brandão, M. et al. Consequential Life Cycle Assessment: What, How, and Why? Encyclopedia of Sustainable Technologies, 2017. p. 277–284.

[20] Brander, M.; et al. Consequential and Attributional Approaches to LCA: a Guide to Policy Makers with Specific Reference to Greenhouse Gas LCA of Biofuels. Ecometrica Press. April 2009. p. 1–14.

[21] Pelletier, N. et al. Rationales for and limitations of preferred solutions for multi-functionality problems in LCA: is increased consistency possible? International Journal of Life Cycle Assessment 20 (2015) 74–86.

[22] Ekvall, T. et al. Attributional and consequential LCA in the ILCD handbook. International Journal of Life Cycle Assessment 21 (2016) 293–296.

Sobre o autor | Fernando Oliveira

Foto Fernando


Fernando é o fundador e editor da Sustenare. Ele é administrador de empresas, cientista da computação e doutor em energia pela Universidade de São Paulo (USP). Fernando morou nos Estados Unidos por dez anos, país onde cursou universidade e trabalhou por igual período para empresas de tecnologia e do ramo editorial.

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