Primeiro mercado a conceder créditos de carbono a um laticínio

Imagem de duas vacas num gramado ao ar livre sob um céu bem azul para ilustrar o artigo sobre o primeiro mercado a conceder créditos de carbono a um laticínio.
Uma startup financiada pela indústria de laticínios é o primeiro mercado de carbono a dar crédito climático a uma mega empresa do setor. Imagem: Photo Mix/Pixabay.
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A indústria de laticínios lançou uma nova estratégia de apelo aos consumidores objetivando mudar a imagem do leite como sendo amigo do clima. Apoiada com financiamento do setor na Califórnia, a startup Athian lançou o primeiro esquema de comércio de carbono para creditar operações industriais de fazendas leiteiras.

Por enquanto, a única receita da Athian para gerar créditos de carbono é alimentar as vacas com um medicamento que as faça produzir a mesma quantidade de leite com menos ração. Esse medicamento em particular, o Rumensin, também é de propriedade e comercializado pela Elanco, uma das principais fabricantes de produtos farmacêuticos veterinários e grande investidora e “co-criadora” da Athian.

Fundada em fevereiro de 2022, a Athian se apresenta como uma “plataforma liderada pela indústria para financiar projetos de carbono dentro da cadeia de valor da pecuária”. A startup realizou sua primeira venda em janeiro deste ano, quando a cooperativa nacional de comercialização de leite Dairy Farmers of America comprou um crédito de carbono de uma fazenda leiteira no Texas.

Essa venda, por sua vez, permitiu que a empresa de comercialização de laticínios reivindicasse mais de 1.000 créditos de carbono – cada um análogo à redução de 1 tonelada nas emissões de carbono equivalente – e ajudou a posicionar a indústria de laticínios mais perto de sua meta maior.

As empresas de leite agora podem rotular seus produtos como “Climate Neutral” [“neutros para o clima”], a fim de garantir aos consumidores que os laticínios que eles compram não estão contribuindo para as mudanças climáticas.

Na realidade, os laticínios são, de longe, a pior opção do leite para o meio ambiente, pois emitem cerca de três vezes mais do que qualquer alternativa à base de plantas e demandam nove vezes mais terra do que o leite vegetal.

Por enquanto, os créditos de carbono da Athian são baseados apenas no Rumensin, mas há outros protocolos em andamento, incluindo uma estratégia de manejo de esterco e outro aditivo alimentar, o Bovaer.

A Athian é muito mais do que um veículo de investimento para o setor. Há milhões em financiamento climático em jogo. A empresa anunciou em meados de dezembro do ano passado que será usada como plataforma para oito projetos de laticínios que receberam mais de US$ 80 milhões em dinheiro federal de conservação destinado a reduzir as emissões de fazendas leiteiras.

A indústria de carnes e laticínios coletivamente contribui com cerca de 14% de todas as emissões de gases de efeito estufa. Imagem: Joachim Suss/Unsplash.

Como funcionam os mercados de carbono

Nos últimos anos, os mercados de carbono tornaram-se cada vez mais populares entre as empresas que procuram compensar suas emissões de gases de efeito estufa [GEE]. Os créditos supostamente devem ser gerados por ações que reduzam ou sequestrem poluentes, como iniciativas de plantio de árvores ou, neste caso, uma indústria de laticínios apontada como geradora de emissões.

As empresas compram os créditos para contrabalançar sua própria poluição – mas os críticos dos mercados de carbono dizem que as empresas estão usando excessivamente os créditos como uma forma de evitar a redução de suas próprias emissões.

Pior ainda, muitos bancos de carbono foram acusados de exagerar seus benefícios climáticos. Uma investigação descobriu que 39 dos 50 esquemas de mercado de carbono não cumpriram os cortes de emissões prometidos.

A poluição da indústria de laticínios encontra os créditos de carbono

Nos últimos anos, o setor da agricultura tem lançado uma série de mercados de carbono baseados em métodos agrícolas, na maior parte dependendo de produtores de soja e milho que usam práticas regenerativas, como plantio direto e culturas de cobertura.

O lançamento da Athian é o registro da primeira vez que um mercado de carbono dá créditos diretamente à indústria de carnes e laticínios, que coletivamente contribuem com cerca de 14% de todas as emissões de [GEE]. Os alimentos lácteos são particularmente ruins para sua pegada de carbono, representando até um terço das emissões de carbono de uma dieta ocidental típica.

A startup supervisiona os pecuaristas em todas as etapas do caminho – selecionando a prática que reduz as emissões, rastreando o impacto, atribuindo um valor de crédito, obtendo o crédito certificado por um dos verificadores terceirizados e, por fim, apoiando a venda dos créditos de carbono resultantes.

A Athian afirma que a alimentação de vacas Rumensin permitiu que o laticínio do Texas reduzisse as emissões em mais de 1.000 toneladas métricas de [dióxido de carbono equivalente]. Mas o gado do laticínio – cerca de 7.000 deles (3.200 dos quais são ordenhados diariamente) – provavelmente emite quase 20.000 toneladas de carbono equivalente a cada ano, e isso é apenas [um número aproximado] com base nas emissões de metano, sem contar o uso da terra ou outras fontes, o que tornaria esse número muito mais alto.

O medicamento Rumensin reduz as emissões ao maximizar a quantidade de leite que cada vaca produz – usando produtos farmacêuticos para obter maior eficiência alimentar por animal em um sistema que já maximiza a eficiência em relação ao bem-estar do próprio animal.

Um produto farmacêutico está sendo usado para que as vacas produzam a mesma quantidade de leite com menos ração. Imagem: Wolfgang Ehrecke/Pixabay.

Apesar de ser comercializado como um aditivo para aumentar a produção de leite, o que o Rumensin realmente faz – de acordo com a FDA – é aumentar a eficiência alimentar. Em outras palavras, quando alimentadas com Rumensin, as vacas comem menos e gastam menos energia. Elas não produzem necessariamente mais leite, mas a eficiência com que elas transformam a ração em leite aumenta.

O Rumensin também é um ionóforo, um tipo de antibiótico usado com frequência em fazendas leiteiras, mas não é considerado um medicamento importante para as pessoas. Embora seja menos preocupante do que alguns medicamentos na agricultura, alguns pesquisadores alertam que o uso desse medicamento antibiótico pode contribuir para a crescente ameaça de resistência aos antibióticos.

Pelo menos 700.000 pessoas em todo o mundo morrem de bactérias resistentes a antibióticos todos os anos, e estimativas sugerem que até 10 milhões de pessoas podem morrer até 2050.

Táticas da indústria de laticínios para comercializar o rótulo “Climate Neutral”

Para a Athian e seus financiadores, o lançamento da startup permite que o setor se aproxime da venda de leite e outros produtos lácteos como “neutros para o clima”. O termo “neutro para o clima” é um rótulo relativamente novo – e a maneira como a indústria o usa nem sempre é clara para os consumidores.

Jennifer Jacquet, Ph.D., membro da faculdade de Ciência e Política Ambiental da Universidade de Miami, há muito pesquisa o uso desse e de outros termos de greenwashing pela indústria. “Eles estão alegando que a neutralidade climática não significa algum impacto adicional”, diz ela, o que, na prática, significa que enquanto uma fazenda leiteira não aumentar suas emissões de [GEE] a cada ano, ela será “neutra para o clima”.

Aqui está o problema: uma fazenda leiteira pode dizer que é neutra por apenas manter (mais ou menos) o status quo. Mas pesquisas mostram que o status quo da indústria de laticínios já é uma enorme fonte de poluição – lançando na atmosfera quase 3% de todas as emissões globais de [GEE] e pouco menos de um quarto de todas as emissões de amônia nos EUA. Para reduzir as emissões da forma como comemos e cultivamos, o status quo não é bom o suficiente.

Esforços da indústria para evitar a redução dos rebanhos leiteiros

Um estudo após o outro tem mostrado que a produção de carne bovina e laticínios é ruim para o meio ambiente. Mas mesmo que os governos em todo o mundo estejam destinando fundos para reduzir as emissões relacionadas a alimentos, há pouco ou nenhum esforço político sério para reduzir o número de animais que criamos globalmente (atualmente na casa dos bilhões).

“Você realmente vê [as empresas] de carne e laticínios fazendo tudo o que podem para não reduzir o tamanho do rebanho”, diz Jacquet. Ela está especialmente preocupada com gigantes como a Elanco que estão tentando se posicionar como “tendo resolvido as mudanças climáticas”, quando, na realidade, continuam a obter lucro sem mudar suas práticas de negócios.

Reduzir marginalmente o metano que cada animal emite não ajuda muito quando simplesmente ainda há muitas vacas. Uma única vaca leiteira produz até 264 libras [119.7 kg] de metano por ano. E há mais de 1,7 milhão de vacas leiteiras só na Califórnia – isso é muito metano, sem falar [nas emissões produzidas pelo] uso da terra e da água. Cientistas climáticos alertam que as emissões do sistema alimentar por si só aumentarão o aquecimento global em quase um grau inteiro até o ano 2100.

Nós conhecemos os alimentos que estão produzindo essas emissões – carne e laticínios são responsáveis por metade desse aquecimento, de acordo com a pesquisa. Todavia, esquemas de crédito de carbono, como o da Athian, fornecem um mecanismo para a indústria de laticínios manter o status quo em vez de promover mudanças.

Artigo original (em inglês) publicado por Grace Hussein na Sentient Media.


Sobre a autora
Grace Hussain escreve sobre agricultura e política agrícola. Suas reportagens foram publicadas na Truthdig and the Good Men Project. Ela possui um mestrado em Animais e Políticas Públicas pela Tufts University.

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