Países ricos estão enviando veículos usados para os emergentes

Imagem do congestionamento de uma avenida larga e dupla na Índia ilustra o post cujo título diz que os países ricos estão enviando veículos usados para os emergentes.
Estima-se que a grande maioria dos veículos no mundo em desenvolvimento, como os desta rua congestionada de Nova Deli, na Índia rode com motores movidos a combustão interna nas próximas décadas. Imagem: Shiva Reddy/Pixabay.
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À medida que as economias altamente desenvolvidas eletrificam suas frotas, elas enviam seus veículos usados com motores movidos a combustão interna (ICE) para as economias emergentes.

A adoção de veículos elétricos (EVs) está em alta: as vendas podem chegar a 17 milhões em 2024, representando um em cada cinco carros vendidos em todo o mundo, de acordo com o relatório Global EV Outlook 2024, da Agência Internacional de Energia.

Esse crescimento, no entanto, mascara tendências preocupantes. Quase todas as vendas de veículos elétricos este ano serão na China (60%), Europa (25%) e Estados Unidos (10%). Muitos países, particularmente os do Sul Global, ficarão com o resto.

Como relatado anteriormente, os países ricos estão enviando veículos usados para os emergentes à medida que as economias altamente desenvolvidas eletrificam suas frotas.

No relatório New But Used: The Electric Vehicle Transition and the Global Second-hand Car Trade, de 2023, os autores Matteo Craglia e Andreas Kopf destacam a Noruega como líder global em eletrificação: 94,8% dos novos registros do país em 2022 foram EVs ou híbridos. Contudo, as exportações de veículos ICE da Noruega aumentaram drasticamente no mesmo período. Desses, “as economias emergentes terão o fundo do barril; ou seja, os carros de pior qualidade que não são dignos de estrada e têm problemas significativos de poluição do ar”, disse Kopf em entrevista.

Enviar os veículos ICE para os países em desenvolvimento é uma forma de “exportação de carbono” – pois reduz as emissões de gases de efeito estufa do mundo desenvolvido, ao mesmo tempo em que efetivamente as transfere para as economias emergentes.

Enfrentar este problema é um desafio espinhoso, pois não há muito que os formuladores de políticas possam fazer para impedir a venda de ICEs em outros países. As montadoras, no entanto, podem desempenhar um papel importante – e algumas começaram a fazê-lo.

A próxima onda

Uma onda muito maior está se formando no horizonte: a China.

Os veículos elétricos podem atingir uma participação de mercado na China de 45% este ano. “Enquanto sua frota eletrifica, a China terá um enorme excedente de ICEs, com o qual estará muito motivada a ganhar dinheiro com exportações”, disseram os autores.

Até 2050, a China pode estar exportando tantos carros quanto todas as outras economias da OCDE juntas.

A torrente resultante de consumo excessivo de gasolina significa que, de acordo com as tendências atuais, apenas 40% da frota de veículos na África Subsaariana será elétrica até 2050. Essa é a melhor perspectiva de caso. Em outros cenários, esse número pode ficar bem abaixo de 10%.

“Isso indica que, à medida que o mundo desenvolvido eletrifica rapidamente, haverá um grande êxodo de veículos convencionais indesejados na direção das economias emergentes, criando um excesso”, disse Craglia.

Um novo modelo para a reciclagem de carros usados

Para evitar que o Sul Global se torne um lixão de veículos usados movidos a combustão interna, parte da solução deve ser a normalização do sucateamento sustentável.

A proposta de regulamento da União Europeia relativa aos veículos em fim de vida constitui um ponto de partida. O regulamento destina-se a garantir que os veículos sejam concebidos tendo em mente a circularidade, cuja responsabilidade recai sobre seus fabricantes. Embora a nova regra vise “garantir que apenas os veículos europeus de alta qualidade e tecnicamente aptos sejam exportados”, ela abrange apenas os veículos que são “irreparáveis”, o que significa que ela fará pouco para impedir que uma enxurrada de ICEs em funcionamento rume para as economias emergentes.

Ainda assim, alguns fabricantes começaram a projetar veículos com a circularidade em mente. Em 2022, por exemplo, o grupo Renault lançou uma nova entidade, The Future is NEUTRAL, a qual pretende “tornar-se líder em escala industrial e europeia da economia circular automotiva de ciclo fechado”.

A The Future is NEUTRAL está desenvolvendo novas maneiras de recuperar os materiais existentes – metais e plásticos – dos carros para reciclá-los na produção de novos veículos. A empresa diz que, em 2023, gerou quase US$ 1 bilhão em receita.

Do jeito que as coisas atualmente são, os veículos novos são compostos de apenas 20% a 30% de material reciclado, tornando toda a operação trabalhosa e cara. Mas com a ajuda de sua fábrica de economia circular, a Refractory, na França, a Renault afirma que esse número pode chegar a 85%.

Se for lucrativo transformar veículos antigos em novos, isso vai desincentivar os fabricantes a enviar modelos antigos para o Sul Global.

Os carros certos

No outro extremo da cadeia de suprimentos, nas economias em desenvolvimento, há ampla oportunidade de criar um mercado de veículos elétricos que reduziria a demanda por importações de veículos ICE. Elas só precisam dos veículos certos.

Nos Estados Unidos e na Europa, os carros elétricos costumam ser comercializados como bens de luxo, custando mais de US$ 30 mil. A produção de modelos mais baratos aumentaria a absorção de veículos elétricos nos países em desenvolvimento.

“Quando você olha para o crescimento futuro das frotas de veículos, ele é dominado por economias emergentes (…) então acho que há uma oportunidade de ser mais criativo em termos de produtos que você está vendendo para esses países para melhor atender suas necessidades”, disse Sebastian Galarza, diretor executivo do Centro de Movilidad Sostenible, uma organização sem fins lucrativos que apoia a descarbonização do transporte na América Latina.

Neste momento, produtores chineses de baixo custo, como a BYD, dominam este espaço, oferecendo modelos acessíveis bem abaixo dos preços dos veículos europeus e americanos comparáveis. As frotas de ônibus nas capitais do Chile e da Colômbia, antes dominadas por marcas europeias, foram substituídas por modelos elétricos chineses.

“Todas as outras concorrentes estão perdendo participação de mercado porque não estão fornecendo produtos competitivos que atendam às necessidades locais”, diz Galarza. “Por que alguém compraria um ônibus Volvo pelo dobro do preço quando… um modelo concorrente vai funcionar bem?”

Enquanto isso, as vendas de veículos elétricos na Tailândia, em 2023, quadruplicaram em relação ao ano anterior, atingindo 10%, de acordo com a IEA. No Vietnã, as vendas de automóveis encolheram em 2023, mas as vendas de veículos elétricos se expandiram para 15% do mercado.

Qual empresa acaba de iniciar a construção de uma fábrica de veículos elétricos na Tailândia? BYD.

Evitar que o Sul Global fique encalhado na era da combustão interna exigirá que os fabricantes usem cada vez mais as peças de carros antigos para construir novos – e que fabriquem veículos elétricos que as economias emergentes realmente precisem e que possam pagar.

Artigo original (em inglês) publicado por Tom Howarth na GreenBiz.

Sobre o autor
Tom Howarth é um escritor freelance sobre clima e ciência. Ele fez mestrado em Engenharia Química pela Universidade de Cambridge e procura trazer seu profundo conhecimento técnico para as questões das mudanças climáticas. Tom também é editor de sua própria plataforma de mídia, The Climate News.

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