Proteção ambiental do Cerrado pode gerar US$ 72 Bi para o Brasil
O Cerrado há muito definha nas sombras de sua irmã muito mais famosa, a Amazônia. Mas este ano, o Cerrado – a savana mais biodiversa do mundo – ganhou as manchetes por todos os motivos errados. Houve críticas particulares da parte de ambientalistas à indústria frigorífica e aos agricultores por conta da conversão da vegetação nativa na região. No entanto, dentro do Brasil, o Cerrado também é celebrado como um milagre moderno, uma terra de abundância que gera 60% de toda a produção agrícola do país, alimentando as exportações e sustentando os meios de subsistência.
Então, como essas prioridades aparentemente conflitantes – proteção ecológica e produção de alimentos, matérias-primas e combustíveis – podem ser resolvidas de uma forma que funcione para a natureza, a sociedade e a economia? Para o Cerrado, essa é agora uma questão de urgência existencial – mas a resposta pode servir de lição para muitos países que enfrentam desafios semelhantes, incluindo os da América Central e do Sul e da África Subsaariana.
O ano passado trouxe algumas boas notícias para a Amazônia, já que o desmatamento caiu mais da metade em 12 meses. Mas, no mesmo período, a área de cerrado convertida para a agricultura disparou 43%. Nas últimas décadas, mais de 30 milhões de hectares – metade de todo esse ecossistema – foram perdidos por causa da rápida expansão demográfica e agrícola, juntamente com a infraestrutura e o desenvolvimento industrial.
Isso importa, e não apenas para as 330 mil espécies (5% de toda a biodiversidade do planeta) que fizeram do Cerrado seu lar. É importante para a corrida do Brasil em reduzir as emissões de carbono. É importante para os agricultores brasileiros, especialmente no longo prazo, já que todo o seu modelo agrícola depende da saúde do bioma e de sua capacidade em fornecer serviços ecológicos. Também é importante para a economia do Brasil em geral e para os muitos países que dependem de suas exportações de soja, milho, cana-de-açúcar e carne bovina.
Vamos pegar as emissões primeiro. Embora o Cerrado não seja uma floresta tropical, suas árvores, campos e solos ricos contêm um sexto de todo o carbono armazenado no Brasil. No entanto, a produção agrícola e a conversão de terras estão consumindo essa reserva crítica, liberando 304 milhões de toneladas de CO2e em 2022 – quase um quinto das emissões líquidas totais do Brasil.
Igualmente alarmante é o impacto da agricultura moderna sobre os serviços ecossistêmicos vitais que o Cerrado proporciona. A principal delas é a água doce. A savana funciona como uma gigantesca torre de água, armazenando 14% dos recursos hídricos superficiais do país.
A água, embora claramente essencial para a agricultura, é igualmente vital para a segurança energética, já que 60% da eletricidade brasileira é gerada por hidrelétricas. No entanto, a conversão de vegetação nativa em terras agrícolas interrompe os padrões regionais de chuva, agrava a erosão e reduz a capacidade do solo de reter água. Desde 1985, quase 90% das bacias hidrográficas analisadas registraram uma diminuição dos fluxos de água. Nesse ritmo, as vazões dos rios no Cerrado cairão um terço até 2050.
De forma simples, o modelo de agronegócio do Cerrado está lentamente estrangulando a galinha dos ovos de ouro. Mas não precisa ser assim. De acordo com um novo relatório recém-publicado pela Tropical Forest Alliance (TFA) do Fórum Econômico Mundial, a tecnologia inteligente, melhores políticas e o aumento do investimento podem criar uma sinergia entre os gêmeos antagônicos de produção e proteção, enquanto geram anualmente até US$ 72 bilhões a mais para o PIB brasileiro até 2030.
Como equilibrar produção e proteção do Cerrado
• Intensificação sustentável da agricultura: A principal constatação aqui é que o Brasil pode aumentar seus níveis de produção agrícola e de carne sem ter que converter mais savana nativa. O foco deve ser restaurar os 32 milhões de hectares de terras degradadas do Cerrado como terra produtiva, usando a agricultura regenerativa e sistemas que integrem lavoura, pecuária e silvicultura. Otimizar a produção de carne bovina, por exemplo, poderia aumentar a produtividade de 67 para 157 kg de carne por hectare por ano, reduzindo as emissões de carne bovina em 45% por quilo. De acordo com análise da Systemiq, coautora do relatório com a TFA, a intensificação sustentável da agricultura no Cerrado pode adicionar de US$ 17 bilhões a US$ 19 bilhões anuais ao PIB brasileiro até 2030.
• Abordagem da bioeconomia para proteger e restaurar a vegetação nativa: o Brasil pode gerar valor para a vegetação nativa aproveitando as oportunidades dos mercados de carbono e bioindústrias como biossaúde, biocosméticos e ecoturismo. Isso poderia gerar US$ 11–20 bilhões adicionais ao PIB.
• Energia renovável bem projetada e indústria verde: O desenvolvimento de energia renovável no Cerrado, juntamente com a produção de biodiesel, combustível sustentável de aviação [SAF] e hidrogênio verde para descarbonizar indústrias emissoras de peso, poderia gerar US$ 19–33 bilhões em novas receitas.
• Incentivos para os produtores protegerem suas propriedades privadas: Enquanto 80% da Amazônia está legalmente protegida contra desmatamento e conversão, apenas 20–35% do Cerrado se beneficia das mesmas leis. Isso significa que mais de 30 milhões de hectares de terras privadas ainda poderiam ser legalmente convertidas. É fundamental desenvolver maneiras de incentivar os proprietários de terras a conservar o máximo possível de vegetação nativa, ao mesmo tempo em que fortalece a aplicação da lei para eliminar a conversão ilegal.
O Brasil já caminha na direção certa. Políticas como o Código Florestal e o Plano de Ação para Prevenção e Controle de Incêndios no Cerrado (PPCerrado) ajudaram a estabelecer as regras básicas. Mas há muito trabalho a fazer, alguns deles burocráticos. Por exemplo, os proprietários devem autodeclarar áreas preservadas em suas terras por meio de uma apresentação ao Cadastro Ambiental Rural (CAR). No entanto, na última década, por conta de recursos estatais limitados, menos de 1% dessas submissões foi totalmente processada.
Há um papel vital a desempenhar pelos investidores internacionais e pelas instituições financeiras de desenvolvimento. Em maio do ano passado, o governo lançou o Plano de Transformação Ecológica, que visa fomentar o crescimento econômico em harmonia com a natureza, impulsionar empregos, produtividade e descarbonização. Uma parte fundamental desse plano é o programa RenovAgro, que visa levantar US$ 120 bilhões de investidores brasileiros e internacionais para revitalizar pastagens degradadas e implementar sistemas integrados lavoura-pecuária-floresta. Oferecer aos produtores linhas de crédito a juros baixos para investir em tais medidas é uma forma prática de instituições financeiras e filantropos fazerem sua parte na proteção do Cerrado.
O imperativo de salvaguardar o Cerrado contra novas conversões é um desafio global. As medidas do lado da demanda, incluindo o Regulamento de Desmatamento da União Europeia (EUDR), enviam sinais importantes sobre a necessidade de dissociar a agricultura da perda da natureza. Mas de acordo com a FAO, do jeito que está, o EUDR só se aplica a terras classificadas como floresta e, portanto, deixa desprotegida grande parte do Cerrado – que é um mosaico complexo de florestas e savana. Expandir o escopo do EUDR para incluir “outras terras arborizadas” poderia trazer benefícios importantes para a proteção do Cerrado.
A capacidade deste bioma único, o maior da América do Sul depois da Amazônia, de continuar fornecendo recursos críticos de água doce, seu futuro como uma potência agrícola para o mundo, suas vastas reservas de carbono armazenado e seu papel como lar de uma em cada 20 de todas as espécies da Terra – tudo isso está ameaçado pela trajetória de desmatamento e conversão de terras atualmente em andamento. É hora de organizações internacionais, agroindústrias, agricultores da região e instituições financeiras agirem imediatamente em conjunto com o governo brasileiro para garantir um futuro melhor para esse ecossistema precioso, embora ameaçado.
Artigo original (em inglês) publicado por Jack Hurd no Fórum Econômico Mundial–WEF.
Sobre o autor
Jack Hurd é Diretor Executivo da Tropical Forest Alliance e Membro do Comitê Executivo do Fórum Econômico Mundial. Ele é bacharel em Economia pela Universidade de Vermont e mestre em Administração Pública pela Universidade de Washington. Jack está baseado em Genebra.
Nota: A imagem no início do texto foi licenciada pela Creative Commons de acordo com a Attribution-Share Alike 4.0 International.