O que é biodiesel e quais são suas características físicas e químicas
Em 1956 o geólogo americano Marion King Hubbert previu que a produção de petróleo dos Estados Unidos teria seu pico entre o final da década de 1960 e começo dos anos 70 – e depois de atingi-lo, tenderia a diminuir1.
De fato, no ano de 1970 sua previsão se tornara realidade, com a produção americana atingindo o pico naquele ano2. Desde então, muitos estudos foram publicados sobre o pico do petróleo, propagado por Hubbert.
Estudos sugerem que o pico da produção mundial de petróleo pode ocorrer até 2030; outros sugerem que ele possa acontecer até 2025.
Embora nenhum estudo seja preciso quanto ao momento em que o pico da produção mundial possa ocorrer, a era do petróleo pode passar não necessariamente por seu esgotamento, mas porque novas reservas devem se tornar mais raras, menos acessíveis e mais caras para que o óleo seja extraído3.
Independentemente do pico do petróleo acontecer (ou não), torna-se essencial encontrar alternativas para sua substituição – preferencialmente oriundas de fontes renováveis – e que possam mitigar os problemas causados pela poluição emitida por veículos que usam combustíveis fósseis, como a gasolina e o diesel4. Uma dessas alternativas é o biodiesel.
O que é biodiesel
Tecnicamente, o biodiesel é definido como um combustível constituído pela mistura de ésteres lineares de ácidos graxos oriundos de plantas oleaginosas5, gorduras animais (sebo bovino) e de resíduos (óleo de fritura, tecnicamente chamado de óleo residual de fritura, ou ORF).
Considerado um combustível livre de compostos sulfurados e aromáticos, o biodiesel também tem características biodegradáveis e não tóxicas6, podendo ser usado puro ou misturado ao diesel (em quaisquer proporções) sem a necessidade de grandes modificações no motor7.
Propriedades físicas e químicas
Independentemente da matéria-prima ou do álcool utilizado na produção de biodiesel, suas propriedades físico-químicas são bem parecidas8, conforme mostrado na tabela a seguir, exceto o óleo de mamona, por apresentar uma viscosidade muito alta5, acima das apresentadas pelas demais oleaginosas.
Dentre as inúmeras propriedades físicas e químicas que podem afetar a eficiência de um combustível, o índice cetano está entre as mais importantes, por ser um indicador da qualidade do mesmo11 e por ser a propriedade que mais tem semelhança com a do óleo diesel7.
Existe uma dúvida recorrente quanto às diferenças existentes entre índice de cetano e número de cetano.
O índice de cetano é um valor calculado com base nas propriedades do diesel, como densidade, viscosidade e volatilidade12. Ele indica a qualidade de ignição do combustível antes que qualquer aditivo químico seja adicionado a ele. Entretanto, o índice não muda com a adição do reforço.
Já o número de cetano é a qualidade real de ignição do combustível medida após o aditivo ser adicionado a ele.
Na refinaria, ambos são essencialmente a mesma coisa, uma vez que o combustível ainda não teve aditivos. Todavia, o refinador, distribuidor, varejista ou usuário final pode colocar um aditivo no combustível para elevar seu número de cetano13.
Em geral, os aditivos são usados para estabilizar a mistura entre o óleo diesel e o biodiesel, para reduzir a formação de depósitos de carbono, evitar reações de oxidação e contaminação do combustível e o consequente entupimento de filtros causado pela ferrugem14.
Os aditivos também servem para melhorar a lubrificação das peças do motor, a ignição e a eficiência de combustão na câmara mediante o aumento do número de cetano15.
Quanto maior for o número de cetano, mais fácil para o combustível se inflamar e melhor será sua combustão no motor5. Logo, um número de cetano mais alto é preferível11,12.
Essa premissa é válida até que se chegue a um determinado ponto de otimização, a partir do qual o aumento do número de cetano pode fazer com que “a combustão ocorra antes da mistura adequada entre o combustível e o ar”7. Assim, um número de cetano além do limite otimizado pode gerar problemas para o motor.
Em geral, o número de cetano do biodiesel é superior ao do diesel fóssil por conta do alto teor de oxigênio do biocombustível7. Porém, a depender do percentual de mistura do biodiesel no diesel, o número de cetano do diesel pode ser maior.
O número de cetano do biodiesel pode variar de 48 a 67, a depender de parâmetros como a composição do ácido graxo do óleo-base, das condições climáticas apresentadas pelo local em que a matéria-prima for extraída, bem como da tecnologia que for usada para o processamento do óleo15.
O índice de cetano do biodiesel também varia de acordo com a matéria-prima e tipo de álcool – etanol ou metanol – empregado no processo de transesterificação9.
De acordo com as especificações da ASTM International, o índice de cetano do biodiesel fica em torno de 55 para o B100 (puro) e 50 para o B20 (20% biodiesel). Já o do diesel varia entre 48 (regular) e 55 (premium)9,16.
Como o biodiesel é produzido a partir de matérias-primas densas, como a gordura animal e plantas oleaginosas, propriedades físicas como densidade e viscosidade são importantes para os motores a diesel. Tais propriedades influenciam diretamente no sistema de injeção5, o qual se encarrega de fazer a dosagem volumétrica e o sincronismo da quantidade de combustível injetado no motor7.
Apesar de ser mais denso do que o diesel, o biodiesel tem um Poder Calorífico Inferior (PCI) menor – o que requer a injeção de mais combustível na câmara de combustão para que a potência do motor apresente resultados semelhantes ao do combustível fóssil7.
Vantagens e desvantagens do biodiesel sobre o diesel
Ambientalmente, o biodiesel apresenta algumas vantagens quando comparado ao diesel fóssil, dentre as quais destacam-se17,18,19,20,21,22:
- Características biodegradáveis e menos tóxicas
- Maior ponto de fulgor (fator que proporciona mais segurança no manuseio)
- Teor de enxofre mais baixo (importante para controlar o aumento da poluição)
- Balanço energético positivo
- Menores emissões de material particulado, gás carbônico e monóxido de carbono (em função da presença de oxigênio)
- Menor custo da matéria-prima, principalmente quando oriunda de ORF
Com relação ao ORF, por se tratar de um resíduo, muitas vezes ele é adquirido até de graça. Essa possibilidade torna sua utilização desejável como matéria-prima para fazer biodiesel, não só pela redução nos custos de produção e mitigação de impactos ambientais, mas também por não competir com a produção de alimentos23, como é o caso do biodiesel feito da soja e do dendê.
Embora o valor do ORF esteja começando a aumentar no mercado, seu custo de aquisição ainda é mais baixo quando comparado com o de matérias primas oleaginosas.
Apesar de todas estas vantagens do biodiesel, é preciso mencionar que ele também apresenta alguns pontos desfavoráveis com relação do diesel que devem ser levados em consideração.
Da mesma forma que a presença de oxigênio ajuda a reduzir as emissões de hidrocarbonetos e monóxido de carbono, ele também tem o potencial para aumentar o teor de água no biodiesel e resultar no aparecimento de bactérias que podem deteriorá-lo22.
No caso específico do ORF, seu aquecimento durante o processo de fritura do alimento pode consumir a maior parte dos antioxidantes e gerar problemas sérios com relação à estabilidade oxidativa do biodiesel24, a qual se constitui em um parâmetro para o desempenho da bomba de injeção25.
Além disso, a oxidação gera sedimentos que acabam resultando em entupimento de filtros26,27 e confere ao biodiesel uma rancificação que decorre da capacidade reativa do oxigênio com substâncias insaturadas28.
Como o biodiesel exerce um bom papel como “solvente”, limpando a sujeira que se armazena dentro do tanque, esta característica pode resultar no entupimento do filtro29,30, problema que também pode ocorrer em temperaturas muito baixas, quando a viscosidade do biodiesel fica mais elevada.
Referências
[1] Hubbert, M.K. Nuclear energy and the fossil fuels. In: Proceedings of San Antonio, Texas. American Petroleum Institute. Drilling Production Practice. San Antonio: 1956. p. 7–25.
[2] Simmons, M. Twilight in the desert: the coming Saudi oil shock and the world economy. Hoboken: Wiley; 2006.
[3] Goldemberg, J.; Lucon, O. Energias renováveis: um futuro sustentável. Revista USP. n. 72, p. 6–15. 2007.
[4] Araújo, C.D. et al. Biodiesel production from used cooking oil: a review. Renewable and Sustainable Energy Reviews 27 (2013) 445–452.
[5] Parente, E. Biodiesel: Uma aventura tecno num país engraçado. Fortaleza: Tecbio, 2003. 66 p.
[6] Kulkarni, M.G.; DALAI, A.K. Waste Cooking Oil – An Economical Source for Biodiesel: A Review. Industrial & Engineering Chemistry Research 45 (2006) 2901–2913.
[7] Angarita, E. et al. Biocombustíveis de primeira geração: biodiesel. In: Lora, E.; Venturini, O. (Ed.). Biocombustíveis, Volume 1. Rio de Janeiro: Interciência, 2012. p. 173–309.
[8] Yaakob, Z. et al. Overview of the production of biodiesel from waste cooking oil. Renewable and Sustainable Energy Reviews 18 (2013) 184–193.
[9] Van Gerpen, J. Cetane Number Testing of Biodiesel. Biodiesel Education. Literature. Journal. Van Gerpen (Internet). 2006.
[10] Sajjadi, B. et al. A comprehensive review on properties of edible and non-edible vegetable oil-based biodiesel. Renewable and Sustainable Energy Reviews 63 (2016) 62–92.
[11] Knothe, G.; Razon, L. Biodiesel fuels. Progress in En and Combust Science 58 (2017) 36–59.
[12] Bezergianni, S. et al. Quality and sustainability comparison of one- vs. two-step catalytic hydroprocessing of waste cooking oil. Fuel 118 (2014) 300–307.
[13] TDI. Turbo Direct Injection Diesel. Cetane Index v. Number.
[14] Cordero-Ravelo, V.; Schallenberg-Rodriguez, J. Biodiesel production as a solution to waste cooking oil (WCO) disposal. Journal of Environmental Management 228 (2018) 117–129.
[15] Ribeiro, N. et al. The Role of Additives for Diesel and Diesel Blended (Ethanol or Biodiesel) Fuels: A Review. Energy & Fuels 21 (2007) 2433–2445.
[16] ASTM International. Designation D976-06 (Reapproved 2011). Standard Test Method for Calculated Cetane Index of Distillate Fuels. Designation D613-14. 2014.
[17] Sheehan, J. et al. Life Cycle Inventory of Biodiesel and Petroleum Diesel for Use in an Urban Bus. NREL – National Renewable Energy Laboratory. Golden, 1998.
[18] Knothe, G.; Steidley, K. A comparison of used cooking oils: A very heterogeneous feedstock for biodiesel. Bioresource Technology 100 (2009) 5796–5801.
[19] Araújo, C. et al. Biodiesel production from used cooking oil: A review. Renewable and Sustainable Energy Reviews 27 (2013) 445–452.
[20] Macedo, I.C.; Nogueira, L.A.H. Avaliação do biodiesel no Brasil. In: Biocombustíveis. Cadernos NAE, n. 2, Seção 1. Brasília: NAE, 2004.
[21] Kagawa, S. et al. Production possibility frontier analysis of biodiesel from waste cooking oil. Energy Policy 55 (2013) 362–368.
[22] Pomeroy, R. Biodiesel Chemistry and Analysis (aula). In: Mayfield, S. Our Energy Future (curso). University of California, San Diego, 2014.
[23] Mattson, J. et al. Second law analysis of waste cooking oil biodiesel versus ULSD during operation of a CI engine. Fuel 255 (2019) 1–13.
[24] García-Martín, J.F. et al. Cetane number prediction of waste cooking oil-derived biodiesel prior to transesterification reaction using near infrared spectroscopy. Fuel 240 (2019) 10–15.
[25[ Mittelbach, M.; Gangl, S. Long Storage Stability of Biodiesel Made from Rapeseed and Used Frying Oil. JAOCS Press 78 (2001) 573–577.
[26] Pullen, J.; Saeed, K. An overview of biodiesel oxidation stability. Renewable and Sustainable Energy Reviews 16 (2012) 5924–5950.
[27] Cavalcanti, E.H.S. et al. Chemical and microbial storage stability studies and shelf life determinations of commercial Brazilian biodiesels… Fuel 236 (2019) 993–1007.
[28] Ramos, L. et al. Biodiesel: Um projeto de sustentabilidade econômica e socioambiental para o Brasil. Revista Biotecnologia Ciência e Desenvolvimento 31 (2003) 28–37.
[29] Worldwatch Institute. Biofuels for transport: Global potential and implications for sustainable energy and agriculture. London: Earthscan, 2007. ISBN:978-1-84407-422-8.
[30] Stead, C. et al. Introduction of Biodiesel to Rail Transport: Lessons from the Road Sector. Sustainability 2019, 11, 904.
Agradecimento: Freepik por permitir usar no início deste post a imagem vetorizada do processamento de recursos naturais. Green vector created by macrovector – www.freepik.com
Sobre o autor | Fernando Oliveira
Fernando é o fundador e editor da Sustenare News. Ele é administrador de empresas, cientista da computação e doutor em energia pela Universidade de São Paulo (USP). Fernando morou nos Estados Unidos por dez anos, país onde cursou universidade e trabalhou por igual período para empresas de tecnologia e do ramo editorial.
– – – – –
Outros artigos sobre biodiesel e políticas públicas publicados por Fernando Oliveira (em inglês):
• History, evolution, and environmental impact of biodiesel in Brazil: A review
• The Brazilian social fuel stamp program: Few strikes, many bloopers and stumbles
• Biodiesel in Brazil Should Take Off with the Newly Introduced Domestic Biofuels Policy: RenovaBio
• From Kyoto to Paris: Measuring renewable energy policy regimes in Argentina, Brazil, Canada, Mexico and the United States