Breve história do biodiesel no mundo
Os primeiros experimentos com o biodiesel remontam ao final dos anos de 1890, quando o inventor alemão Rudolf Diesel inicia seus primeiros estudos com o óleo de amendoim para ser usado como combustível1. Diesel mostrou os resultados do estudo durante a Feira Mundial de Paris, em 1900. É nesse palco que começa a história do biodiesel no mundo, a partir da percepção de que um óleo vegetal podia ser convertido em combustível renovável2.
Quando em 1908 o engenheiro americano Henry Ford introduziu no mercado o primeiro veículo a ser produzido em massa numa linha de montagem (o Ford Modelo T), experimentos realizados com o biodiesel (na década de 1890) e com o etanol (em 1820) já atestavam a viabilidade desses biocombustíveis para uso em motores de Ciclo Diesel e de Ciclo Otto3.
Embora os motores naquela época já pudessem ser calibrados para rodar tanto com o biodiesel e diesel ou etanol e gasolina1, o petróleo barato e abundante faz o mercado optar pelos combustíveis fósseis em detrimento dos renováveis.
Desde que o “coronel” americano Edwin Drake perfurou com sucesso o primeiro poço de petróleo em 1859, na cidade de Titusville, estado da Pensilvânia4, ele tem jorrado em abundância e, assim como seus derivados, tem tido um reinado duradouro e hegemônico.
Biodiesel no mundo
De 1860 a 1862, a produção americana de petróleo passou de 450 mil para três milhões de barris anuais. O excesso de petróleo no mercado fez o preço do barril cair de US$ 10.00 para US$ 0.50 no mesmo período de tempo4. Diante de tal abundância do combustível fóssil, não demoraria muito para o destino dos biocombustíveis ser determinado.
Começa, então, a jornada que fará com que a possibilidade de uso dos biocombustíveis seja esquecida por um longo período, até ser ressuscitada a partir dos primeiros choques do petróleo, nos anos 70. O primeiro, resultante do embargo do óleo, orquestrado pela Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), em 1973. O segundo, em 1979, decorrente da Revolução Iraniana.
A partir de então, o preço do barril de petróleo atinge patamares exorbitantes, sem precedentes desde que ele jorrou pela primeira vez em 18591. Consequentemente, a corrida para substituir os combustíveis fósseis foi intensa em várias partes do mundo.
Assim, vários programas foram criados, mas nenhum teve tanto sucesso como o brasileiro Proálcool, o qual conferiu ao Brasil certo protagonismo global na área de etanol – e que, de certa forma, se estendeu também a outros biocombustíveis, como o biodiesel.
A figura abaixo mostra a linha do tempo dos biocombustíveis e do petróleo, de forma resumida, desde 1820 a 2017. Nela é possível perceber alguns dos motivos pelos quais os biocombustíveis não prevaleceram diante dos combustíveis fósseis, embora tecnicamente se qualificassem.
De qualquer forma, ao longo dos anos em que o petróleo tem prevalecido, diversos países conduziram os mais variados estudos e testes e criaram políticas públicas no sentido de viabilizar os biocombustíveis.
A Áustria foi o primeiro país a realizar testes em motores a diesel (usando o óleo de fritura, em 1983) e o primeiro a produzi-lo e usá-lo (juntamente com o óleo de colza) em escala industrial, em 1994, quando a primeira usina de metil éster de óleo de fritura entrou em operação por lá6.
Quatro anos mais tarde, a usina já havia produzido 3,5 mil toneladas de biodiesel de óleo de fritura para uso em vários tipos de veículo rodando com 100% de biodiesel sem apresentar qualquer tipo de problema7.
O know-how adquirido com os primeiros estudos e experimentos usando o biodiesel fez da Áustria a pioneira no mundo na aprovação de padrões para que o biodiesel de óleo de colza pudesse ser usado em motores diesel8.
A padronização austríaca serviu de referencial para outros países (como Alemanha, Itália, França e EUA) poderem criar novas diretrizes voltadas para a produção e uso do biodiesel8.
O caráter mitigador de emissões de poluentes que ele apresenta9,10 o torna importante para o setor de transportes, sobretudo na União Europeia (UE), seu principal mercado mundial.
A Renewable Energy Directive (RED), diretiva que determina os níveis de utilização de energias renováveis na região, foi criada para que seus membros cumprissem até 2020 a meta mínima obrigatória de 10% da quota de biocombustíveis na gasolina e diesel usados no setor de transportes11.
Com a revisão da RED em dezembro de 2018, a nova diretiva REDII estabeleceu a meta obrigatória de 14% para valer a partir de 202112; ambas as diretivas estimularam outros países no mesmo sentido.
De 2004 a 2018, o número de países que adotaram políticas públicas regulatórias incentivando energias renováveis no setor de transportes aumentou de 15 para 70. Desse total, 45 têm metas nacionais de renováveis a serem implantadas pelo setor até o ano de 2030. Até 2018, 44 países implementaram 54 políticas precificando o carbono.
Portanto, as políticas voltadas para diminuir o uso de combustíveis fósseis no setor de transportes, no período de 2013 a 2017, resultaram em um aumento de 18% no consumo mundial de biocombustíveis, principalmente o biodiesel e o etanol12.
Produção global e principais países produtores
Há anos a UE tem sido o maior mercado global de biodiesel. A produção da região em 2019 foi de 15,3 bilhões de litros, fatia que representou aproximadamente 33% do total de 46,5 bilhões de litros13 produzidos naquele ano em todo o mundo.
No ranking entre países produtores de biodiesel, a Indonésia assumiu a primeira posição em 2019 e a manteve em 2020, com uma produção de oito bilhões de litros. O Brasil aparece em terceiro lugar logo atrás dos EUA. A Argentina, que costumava figurar entre os cinco maiores produtores mundiais, em 2020 caiu para a nona posição em função das tarifas americanas aplicadas à importação do biocombustível argentino14.
Nos Estados Unidos, a produção aumentou de 4,8 bilhões de litros em 201315 para 6,8 bilhões de litros em 202014. Embora a produção americana no período tenha crescido em torno de 40%, o setor de biocombustíveis naquele país enfrentou problemas políticos (durante a gestão do ex-presidente Donald Trump) que impediram um crescimento ainda mais robusto.
Um dos problemas refere-se ao fato de que os produtores ficaram quase dois anos sem os créditos tributários, os quais foram concedidos quando da implementação da Renewable Fuel Standard, em 2007, lei cujo principal objetivo era o de estimular o mercado interno de biocombustíveis16. Sem os créditos tributários, os produtores alegaram que o biodiesel perdera competitividade diante do diesel.
O setor também reclamou da agência de proteção ambiental americana por conceder dezenas de pequenas “isenções de refinaria” aos produtores de combustíveis fósseis16. Tais medidas causaram uma forte queda na demanda e danos à indústria do biodiesel e diesel renovável dos EUA, fazendo com que alguns produtores em todo o país fechassem as portas e demitissem trabalhadores17.
As notícias ruins para o setor do biodiesel dos EUA não pararam por aí. A guerra das tarifas que o governo americano travou com a China agravou a situação ainda mais.
Ao impor tarifas sobre produtos chineses, os EUA tiveram uma reciprocidade do lado oriental, que também resolveu impor tarifas sobre vários produtos americanos, incluindo a soja – commodity que tinha na China seu maior mercado18.
Essa guerra tarifária fez o setor de biodiesel americano passar por um momento crítico de retração de demanda e de investimentos, uma vez que as regras de mercado mudaram e seguiram na direção contrária à que o setor estava rumando até 2018.
Se o biodiesel no mercado americano sofreu alguns contratempos, no mercado asiático ele teve crescimento rápido em alguns países. Na Indonésia, por exemplo, desde 2013 a produção vem aumentando em função da adoção de novas políticas públicas voltadas para os biocombustíveis.
Em 2018, a produção no país foi de quatro bilhões de litros, um aumento de 30% em relação ao ano anterior – reflexo da mistura obrigatória de 20% de biodiesel no diesel, tanto no setor de transportes como no de energia12. (Nota: Uma mistura obrigatória de 20% significa que ao abastecer o veículo com dez litros de óleo diesel, o consumidor estará colocando no tanque oito litros de diesel e dois litros de biodiesel.)
Em 2020 a mistura obrigatória na Indonésia passou para 30%, resultando numa produção anual de oito bilhões de litros de biodiesel. Aumento que fez o país crescer 11% em 2020, apesar da redução de 12% na demanda de diesel no setor de transportes no mesmo ano, por conta da Covid-1914.
Assim como na Indonésia, a produção de biodiesel na Tailândia também teve um bom crescimento (30% desde 2013) por conta do plano adotado para desenvolver energias renováveis como, por exemplo, a geração de eletricidade a partir do biodiesel de óleo de fritura. Essa matéria-prima tem sido usada também para outros fins em outras partes do mundo.
Um deles é como combustível de aviação, conforme anunciado pela empresa aérea holandesa KLM em 201919. Outro uso é na frota de transportes urbanos de cidades como Londres. Em Johanesburgo, na África do Sul, o biodiesel e o biogás estão sendo considerados para abastecer o mesmo tipo de transporte público20.
Além de ser produzido a partir do óleo de fritura, há várias outras matérias-primas que são usadas na produção do biodiesel.
Principais matérias-primas da produção mundial
Enquanto que o biodiesel é o biocombustível mais usado na UE, o óleo de colza continua sendo sua matéria-prima predominante – cerca de 80% da produção21. Todavia, o óleo de fritura vem ganhando espaço e, mesmo que modesto, já é considerado a segunda fonte para a produção de biodiesel em alguns países da região22,23.
Os motivos são variados, mas o principal é atribuído à preocupação dos europeus com os altos índices de emissão de dióxido de carbono (CO2) ocorridos nas últimas décadas21.
Outros motivos também contribuem para a adoção do biodiesel de óleo de fritura. Por exemplo, ele não compete com a produção de alimentos, reduz os gases de efeito estufa24 e é mais barato do que as matérias-primas tradicionais, principalmente em alguns países da UE25.
Perspectivas para os biocombustíveis líquidos
A necessidade existente para que a gasolina e o diesel sejam gradativamente substituídos por opções menos prejudiciais ao meio ambiente tem resultado no aumento consistente da produção mundial de seus substitutos renováveis, desde o início dos anos 2000, como é o caso do biodiesel, por exemplo.
Portanto, as energias renováveis no setor de transportes têm uma previsão de crescimento para os próximos anos, cuja fatia dos biocombustíveis líquidos (biodiesel e etanol) deverá ser de 89% em 2023, principalmente no segmento de transportes rodoviários, majoritariamente liderado pelos automóveis de passeio. É uma fatia considerável, cuja predominância decorre da compatibilidade que os biocombustíveis líquidos têm com os motores a combustão interna dos atuais veículos29.
Apesar dos EUA ter perdido para a Indonésia a hegemonia como o maior produtor mundial de biodiesel, o país vai continuar dominando o consumo de biocombustíveis (etanol e biodiesel) no setor de transportes com a maior fatia em 2023, por conta de sua liderança global na produção e no alto consumo per capita existente no país.
Assim como nos EUA, na UE a maior parte das energias renováveis nos transportes vem dos biocombustíveis líquidos, principalmente os convencionais, oriundos de culturas cujo consumo aumentou em função da RED29, diretiva mencionada anteriormente.
Por outro lado, em 2023, os biocombustíveis na região sofrerão uma leve queda, em comparação com a produção dos últimos anos, por conta de uma demanda mais baixa que é decorrente da crescente eficiência no consumo de combustível na frota de veículos29.
No Brasil, a recente medida adotada pelo Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), de reduzir o percentual da mistura obrigatória do biodiesel no diesel (de 13% para 10%) por todo o ano de 2022, trará sérias consequências para o setor de biodiesel no país. Além de aumentar o desemprego em sua cadeia produtiva, sobretudo penalizando a agricultura familiar, o Brasil terá que importar mais diesel fóssil – o que faz o país seguir na contramão do que a população mundial tem clamado nos últimos anos: diminuir as emissões de dióxido de carbono na atmosfera.
De qualquer forma, apesar da supremacia do petróleo ter se espalhado desde sua descoberta, os biocombustíveis nunca deixaram de existir. E hoje, diante do aquecimento global, causado principalmente pelas emissões de CO2 que escapa dos veículos movidos a gasolina e óleo diesel, mais do que nunca o protagonismo dos biocombustíveis é desejado por ambientalistas espalhados pelos quatro cantos do planeta.
Referências
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[29] IEA. International Energy Agency. Renewables 2018: analysis and forecast to 2023. Paris: IEA, 2018. ISBN: 978-92-64-30684-4.
Agradecimento: Freepik por permitir usar neste post a imagem vetorizada da bomba de combustível. Business vector created by JComp – www.freepik.com
Sobre o autor | Fernando Oliveira
Fernando é o fundador e editor da Sustenare News. Ele é administrador de empresas, cientista da computação e doutor em energia pela Universidade de São Paulo (USP). Fernando morou nos Estados Unidos por dez anos, país onde cursou universidade e trabalhou por igual período para empresas de tecnologia e do ramo editorial.
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Outros artigos sobre biodiesel e políticas públicas publicados por Fernando Oliveira (em inglês):
• History, evolution, and environmental impact of biodiesel in Brazil: A review
• The Brazilian social fuel stamp program: Few strikes, many bloopers and stumbles
• Biodiesel in Brazil Should Take Off with the Newly Introduced Domestic Biofuels Policy: RenovaBio
• From Kyoto to Paris: Measuring renewable energy policy regimes in Argentina, Brazil, Canada, Mexico and the United States