Pesquisa brasileira investiga crescimento de plantas fora da Terra

Imagem de uma flor do gênero zinnia dentro do que aparenta ser uma sala da Estação Espacial Internacional que mostra um pedaço do planeta Terra ilustra o post cujo título diz que uma pesquisa brasileira investiga crescimento de plantas fora da Terra.
Flor do gênero Zinnia é cultivada na Estação Espacial Internacional. Crédito: Nasa Johnson Space Center/Revista Pesquisa FAPESP.

Iniciativa busca contribuir com programa da Nasa cujo objetivo é abastecer futuras colônias na Lua e em Marte.

Cerca de 40 pesquisadores brasileiros de 13 instituições formaram uma rede, por enquanto informal, para avançar em uma área ainda pouco explorada no país: a agricultura espacial. O projeto ganhou impulso depois que a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e a Agência Espacial Brasileira (AEB) assinaram em setembro de 2023 um protocolo de intenções com foco no crescimento de plantas no espaço, abrindo uma oportunidade para o Brasil contribuir para o programa Artemis, da Nasa, agência espacial norte-americana.

Essa iniciativa prevê, entre outros pontos, a construção de uma base na Lua como um primeiro passo para uma futura missão tripulada a Marte. Em meio a uma nova corrida espacial travada especialmente com a China, os Estados Unidos lançaram em 2020 os Acordos Artemis, estabelecendo diretrizes gerais para a cooperação entre países na exploração pacífica do espaço. O Brasil aderiu há quase três anos ao acordo, que conta hoje com a participação de 36 nações.

Um dos desafios de longas missões fora da Terra é a produção de alimentos frescos, seja em estações espaciais e espaçonaves ou mesmo na Lua e em Marte. Iniciativas internacionais têm buscado desenvolver projetos e protótipos de possíveis estufas lunares e marcianas. Pesquisas realizadas pela Nasa contribuíram para aprimorar o uso de luzes LED na agricultura em ambientes controlados e na estrutura de fazendas verticais, hoje montadas nas cidades.

Na Estação Espacial Internacional (ISS), projeto conjunto das agências espaciais norte-americana, europeia, canadense, japonesa e russa, astronautas já consomem alface, couve-chinesa, rabanete, tomate, acelga, entre outros vegetais, cultivados em câmaras de duas plataformas desenvolvidas pela Nasa, o Sistema de Produção Vegetal (Veggie) e o Hábitat Avançado de Plantas (APH). Uma terceira plataforma, Ohalo III, está em desenvolvimento no Centro Espacial Kennedy, na Flórida, Estados Unidos.

Agora, grupos brasileiros pretendem usar a sua expertise para contribuir nessa área. “O Brasil é reconhecido internacionalmente pela pesquisa agrícola e não há razão para deixar de participar do Artemis em um setor em que somos muito fortes”, diz a engenheira-agrônoma Alessandra Fávero, pesquisadora da Embrapa Pecuária Sudeste, sediada em São Carlos (SP), e líder da iniciativa.

Fazenda vertical da empresa paulista Pink Farms: pesquisas da Nasa contribuíram para aprimorar o uso de luzes LED nessas instalações. Crédito: Léo Ramos Chaves/Revista Pesquisa FAPESP.

“Nossa ideia é trabalhar em um pacote tecnológico de duas plantas-modelo: batata-doce e grão-de-bico. Queremos desenvolver cultivares mais adaptados a situações desafiadoras, como as de ambiente fechado, de microgravidade e sujeitas à radiação cósmica.” A atmosfera da Terra protege as plantas e os animais dos vários tipos de radiação ionizante presentes no espaço. As consequências da exposição intensa, sem a proteção da atmosfera, como os possíveis efeitos mutagênicos nos vegetais, precisam ser mais bem estudadas.

Fávero pondera que as plantas e sistemas desenvolvidos poderão ser usados tanto em estações espaciais e na Lua como eventualmente na Terra. “Não apenas em fazendas verticais urbanas, mas em qualquer outro contexto associado às mudanças climáticas, em que tenhamos menor disponibilidade de água ou luz”, sugere.

A definição das duas plantas-modelo ocorreu após um ano de conversas e discussões entre os pesquisadores, antes da formalização do protocolo entre Embrapa e AEB, em 2023. “Para uma colônia extraterrestre ou viagem espacial muito longa, levar alimento da Terra tem custo elevadíssimo. E o espaço para estocagem é reduzido”, pondera o biólogo Gustavo Maia, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), no Rio Grande do Sul, um dos membros da nova rede. Segundo ele, o aspecto nutricional será primordial para os colonizadores. “Certamente não haverá muitas culturas. Por isso, optamos pela batata-doce, que fornece carboidrato, e pelo grão-de-bico, rico em proteína”.

Também pesou para a escolha dos dois vegetais, segundo o pesquisador, o fato de o Brasil contar com um amplo banco de germoplasma (amostra de materiais genéticos) dessas culturas. “Um dos grandes desafios da agricultura no espaço é o efeito mutagênico [capaz de mudar o DNA da planta] causado pela radiação cósmica. Vamos submeter uma vasta gama de material genético a essas radiações e identificar as plantas mais tolerantes”.

Embrapa pretende desenvolver novos cultivares de grão-de-bico e batata-doce adaptados ao ambiente espacial de microgravidade. Crédito: Léo Ramos Chaves/Revista Pesquisa FAPESP.

Outra restrição para o cultivo no espaço é a ausência de fontes abundantes de água, oxigênio e nutrientes. Para superar essa barreira, os pesquisadores terão de selecionar plantas com alta eficiência no uso de água, luz, nitrogênio e demais nutrientes.

Uma das questões é descobrir qual o substrato ideal para que as plantas cresçam.  “Como o solo lunar é muito pobre, pensamos em hidroponia [cultivo em água], aeroponia [com as raízes das plantas suspensas] e até na fertilização com microrganismos ou matéria orgânica”, destaca o pesquisador da UFPel, especialista em fisiologia do estresse em plantas. Ainda não há respostas. “Uma coisa é certa: os cultivares não poderão demandar muitos nutrientes”.

Responsável pelo Laboratório de Cognição e Eletrofisiologia Vegetal da UFPel, Maia normalmente emprega a soja como modelo em seus experimentos. No projeto, sua função será estabelecer os parâmetros fisiológicos para entender como os vegetais podem se comportar nas condições limitantes do espaço e, assim, ajudar na seleção dos materiais genéticos mais adequados.

O grupo também buscará desenvolver uma tecnologia de interface planta-computador para monitorar a distância os cultivos em tempo real, fazer diagnósticos com o uso de inteligência artificial e criar um sistema automático de manejo.

“É como se a própria planta fosse se ajustando ao ambiente sem interferência humana direta”, explica Maia. “Já temos um protótipo no qual sensores coletam os sinais bioelétricos das plantas, de forma análoga a um eletrocardiograma. Com esses dados, é possível fazer um diagnóstico do estado fisiológico do vegetal. Sabemos se está faltando água e nutrientes ou se ele tem alguma doença”, explica.

Com a futura interface planta-computador, os pesquisadores poderão fazer intervenções a distância no espaço, resolvendo um problema sem a necessidade de um astronauta manipular diretamente o cultivo.

Em artigo publicado em 2021 na revista Frontiers in Sustainable Food Systems, a equipe de Maia mostrou como ocorre a comunicação interna das plantas em uma reação a estresse. No experimento detalhado no trabalho, eles conseguiram detectar sinais elétricos enviados pelo fruto (no caso, tomate) ao restante da planta quando era atacado por lagartas.

Os pesquisadores colocaram eletrodos nas hastes que sustentam o tomate e perceberam diferenças nas atividades elétricas de frutos que sofreram danos. Também foram constatadas alterações na análise bioquímica dos frutos e das folhas das plantas atacadas.

“Não podemos fazer uma associação direta do sinal elétrico gerado no fruto com a resposta observada, mas é provável que isso esteja ligado a outras formas de sinalização de herbivoria [ataque de algum animal] já estabelecidas”, escrevem os autores no texto. Eles concluíram que o estudo “pode contribuir para uma colheita e uma produção de alimentos mais sustentáveis”.

Astronauta Kayla Barron trabalha em um experimento do projeto Veggie no espaço. Crédito: Nasa Johnson Space Center.

Experimentos no espaço

Parte dos experimentos da recém-formada rede brasileira deverá ocorrer nas universidades e nos centros de pesquisa usando equipamentos como um clinostato adaptado, aparelho que simula condições de microgravidade ou ausência de gravidade. Os pesquisadores preveem que em algum momento serão realizadas experiências na ISS ou em alguma nave fora da Terra.

Para tanto, poderão contar com a experiência do engenheiro-agrônomo Wagner Vendrame, do Departamento de Horticultura Ambiental da Universidade da Flórida, que também participa da rede. Especialista em produção e conservação de plantas ornamentais usando técnicas de criopreservação e micropropagação, Vendrame já teve cinco de seus experimentos enviados ao espaço, em colaborações com a Nasa a partir de 2007.

Quatro deles foram com o pinhão-manso. “Queríamos ver como a microgravidade afetava a expressão de certos genes. Demonstramos que alguns são ativados, se expressam mais, e outros são reprimidos. Certas mudanças foram permanentes”, observa Vendrame, formado na Universidade de São Paulo (USP). “Ao chegar ao espaço, a planta percebe que está em um ambiente de estresse e começa a ligar e desligar ‘interruptores’ para ver se consegue alcançar equilíbrio e sobreviver. Ela passa a produzir proteínas relacionadas a estresse abiótico, que nesse caso é falta de gravidade e radiação. No fim, fica mais tolerante a estresse”.

Prevendo novos estudos em microgravidade com o pinhão-manso, Vendrame e colegas sequenciaram e anotaram possíveis marcadores no genoma da planta. “O ambiente de microgravidade tem características únicas que permitem estudos sobre os seus efeitos na estrutura celular e na fisiologia das plantas”, afirmam Vendrame e colegas em artigo publicado no periódico International Journal of Genomics, em 2017.

“Mutações induzidas pela microgravidade podem ser exploradas em uma nova abordagem para o cultivo de plantas ao combinar biologia espacial com tecnologia de cultivo agrícola”, escreveram os autores no artigo.

No primeiro experimento em colaboração com a Nasa, Vendrame enviou à estação internacional células de Arabidopsis thaliana, uma das espécies vegetais mais usadas em pesquisas científicas, de ipê-branco, de flamboyant e de orquídea. “No espaço, em um ambiente de microgravidade, percebemos que as células se aglutinam e formam uma estrutura tridimensional, enquanto aqui na Terra elas se espalham de forma mais bidimensional”, diz o pesquisador.

Cultivo in vitro com espectro de luz azul, feito em laboratório da USP, com o objetivo de reduzir o metabolismo da planta. Crédito: LCTPO-ESALQ-USP.

Eles partiram da ideia de que essas células são semelhantes às células-tronco humanas, pois teriam toda a informação genética para gerar uma planta inteira, e não apenas uma parte dela, como raiz ou parte aérea. “Queríamos demonstrar com células de plantas, mais fáceis de manipular, o conceito de que elas cresciam em um formato mais tridimensional no espaço”, conta. Segundo ele, isso abriria a possibilidade de, no futuro, criar órgãos humanos para transplante a partir do cultivo no espaço de algumas células.

Outro brasileiro que trabalha com plantas ornamentais e participará das pesquisas sobre agricultura no espaço é o engenheiro-agrônomo Paulo Hercílio Viegas Rodrigues, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da USP. Em 2021, ele coordenou uma equipe em um desafio internacional proposto pela Nasa e pela Agência Espacial Canadense cujo objetivo era produzir, em 2 metros cúbicos, alimento fresco em uma hipotética viagem a Marte.

O grupo utilizou dados obtidos de três linhas de pesquisa anteriores que ainda seguem em desenvolvimento: uma sobre o espectro de luz azul em cultivos in vitro, que reduz o metabolismo de algumas plantas e tem propriedade antioxidante; outra sobre a produção de morangos em jardins verticais indoor; e uma terceira sobre o D-limoneno, um solvente biodegradável que tem características fungicidas e inseticidas e, ao mesmo tempo, aumenta o teor de carotenoide da planta.

O projeto da equipe, usando morango e taioba, foi selecionado entre os 10 melhores da competição. “O banco de germoplasma compacto, um equipamento que criamos para testar diferentes espectros de luz na taioba, será patenteado”, conta Rodrigues. “O interessante é que, com isso, não é preciso levar as plantas ao espaço para testar. Estamos acabando de construir nosso próprio clinostato 3D, que produz o efeito de microgravidade, permitindo a realização dos ensaios aqui mesmo.”

Busca por recursos

Por enquanto, não há nenhum recurso específico da AEB voltado à empreitada da rede brasileira. Segundo o matemático Rodrigo Leonardi, diretor de Gestão de Portfólio da agência, após o estabelecimento do protocolo de intenções, há tratativas avançadas com a Embrapa para celebrar um acordo de cooperação técnica de modo que se faça um desembolso para apoiar o início dos trabalhos. “Vamos garantir os investimentos mínimos com recursos próprios da AEB, mas isso não será suficiente”, diz. Ele afirma que a agência gostaria de investir R$ 20 milhões nos próximos quatro anos no projeto de agricultura espacial.

Os pesquisadores que integram a rede focada em agricultura espacial afirmam que, uma vez firmado o acordo de cooperação com a AEB e detalhadas as etapas de execução do projeto e o roteiro de ações, os parceiros pretendem solicitar apoio a agências de fomento, empresas e até mesmo outros setores do Executivo e Legislativo. Para o segundo semestre, eles planejam a realização de um congresso sobre agricultura espacial, em local ainda a ser definido. Será o primeiro do gênero no Brasil.

A reportagem acima foi publicada com o título “Rumo à nova fronteira agrícola” na edição impressa nº 339, de maio de 2024.

Artigos científicos

REISSIG, G. N. et al. Fruit herbivory alters plant electrome: Evidence for fruit-shoot long-distance electrical signaling in tomato plants. Frontiers in Sustainable Food Systems. 20 jul. 2021.
TIAN, W.
et al. Enriching Genomic resources and marker development from transcript sequences of Jatropha curcas for microgravity studies. International Journal of Genomics. 5 jan. 2017.

Artigo original publicado por Frances Jones na Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND.

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